Ana Neves

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Esses corpos nunca estão estáticos. Parecem desejar por uma contraditória agonia de errância. É assim que aparecem as obras da artista Ana Neves, pernambucana, nascida em São Vicente Ferrer, em 1998.

Sua produção tem como técnica principal a bidimensionalidade, focalizando a pintura, mas amplas incursões em desenhos com técnicas variadas. O que a interessa sobremodo é construção investigativa ‘‘do que é ser humano, enquanto adquire consciência e consistência de ser’’, como afirma a artista.

Ainda que pisem no chão, ou que se coloquem à frente de um canavial, ou em meio a estruturas arquitetônicas, este envolvimento em paisagens ou situações geoespaciais são apresentadas, antes, através do movimento e da tremulação dos corpos que neste ambiente transitam e vivem os ciclos do tempo fugidio.

O que é representado não é a cinética dos corpos, mas sim o que o motivou. O próprio corpo de Neves é evidência dessa errância e de uma pendulação migrante enquanto pessoa que já morou em diferentes casas e cidades.

O êxodo foi historicamente imposto a grupos sociais subalternizados. Das diásporas africanas, aos êxodos rurais testemunhados no Brasil, país cuja fundação e continuação é pautada numa espécie de violência que agencia e desloca corpos pelo espaço social.

A paisagem nunca é mera entidade contemplativa. Ela é resultado de operações sociais e ecológicas. Ao visualizar os territórios visualmente enunciados na obra de Neves, o percebemos apropriado pelos seres, e como isso engendra fenômenos derivados do uso coletivo e político. Há também a formação de indícios, seja pelos animais como bois, peixes, onças, pela vegetação canavieira, ou pelos aspectos cromáticos que aludem a localidades específicas do eixo da zona da mata pernambucana, de onde ela nasceu.

Só temos um nascimento em vida, uma raiz no mundo. Na botânica, a raiz é a origem, mas em muitos casos as raízes são predadoras, se apoderam e matam o que está à volta, impedindo a convivência pacífica com outras espécies. Opondo-se à raiz, adotamos aqui a ideia de rizoma, que é uma raiz desmultiplicada, multifacetada, que se estende em rede pela terra ou ar, sem que nenhuma origem sobreponha como afirmação final.

O conceito de rizoma amplia, assim, a noção de enraizamento, recusando a ideia de uma raiz totalizante e definidora de toda identidade estática do ser. O pensamento do rizoma estaria na base daquilo que o filósofo e poeta martinicano Edouard Glissant denominou enquanto uma ‘‘Poética da Relação’’, segunda a qual toda a identidade e subjetividade são resultado das relações que estabelecemos com tudo que nos é externo.

As vivências que temos, os solos que pisamos, em suma, a convivência inter-espécies, e inter-territórios modaliza aquilo que somos. Estas relações são moventes, dado que acontecem na fatura do tempo que é corrente. A obra de Neves é a expressão marcante destes sentidos, em que tudo parece ser errância, movimento e indeterminação mesmo que estruturalmente pautados na figuração.

A artista manipula a imagem para evidenciar a interconexão entre o ser humano e o ambiente ao seu redor utilizando a ideia, ou sugestão, dos corpos híbridos: figurações que unem humano, fauna, flora e objeto, e revelam tanto a partilha do mundo quanto às tensões de pertencimento e resistência.

Imbuídos nesta ‘‘Poética das Relações’’, Neves propõe um léxico próprio de figuração, a partir de um repertório recorrente de signos que dizem respeito à sua própria trajetória pessoal, mas que fundam alegorias universais sobre ciclos, sonhos, coragem, e determinação.

Para Neves, o próprio rosto é a mancha pigmentar inicial da composição pictórica. O interesse particular da artista não é na prática do autorretrato, gênero canonizado na história da arte, mas na busca por registro de identidades que carregam em si lacunas referente às questões raciais no Brasil, especialmente às identidades pardas e em como há uma negação da história destes corpos. Suas origens, descendências, trânsitos são apagados. Desta feita, a artista caricaturiza suas feições negroides, evidenciando lábios, deformando olhares, que partem de si, mas formam figuras alhures, que carregam consigo questões do mundo.

Um dos signos recorrentes do trabalho de Neves também são estruturas curvadas, perpassadas por riscos, que parecem significar pontes. Aparecem geralmente no canto superior das obras. Às vezes perpassam os corpos, se entrosam as figurações, ou somente constituem um elemento no plano visual.

Local de trânsito, de passagem, e de impermanência, a ponte aparece para além do sentido tradicionalmente aplicado na psicanálise, onde a ponte indica o contato com o duplo, com a espera de um outro, nestas passagens visuais, o enunciado da ponte não é o desejo de encontro, mas a vontade de chegada.

Obliterando a representação óbvia, podemos ver nesta figuração também um túnel, ou uma escada? Uma passagem subterrânea e alternativa por onde chegar ao destino almejado seja uma forma de mobilidade hackeadora? Traçar pontes, fazer contatos são laços determinantes para grupos sociais que nascem com essas oportunidades já traçadas. Para muitos outros, a passagem é mais difícil.

O peixe, animal da fauna litorânea do Nordeste, aparece de forma recorrente na produção de Neves, descrito com precisão quase taxonômica. Em São Vicente Férrer, sua mãe vendia peixe na feira e durante muito tempo, o peixe foi o principal sustento da família, chefiada por uma mãe solteira. Quando Neves insere o peixe em suas obras, ela o converte em metáfora da luta pela sobrevivência. Assim, ao evidenciar o animal em suas obras, a artista, como sua mãe, sugere também “vender seu peixe” enquanto busca seus sonhos.

A artista possui estreita relação com o universo da literatura, sendo a primeira linguagem artística em que produziu. Chegou a lançar livros em edição artesanal, em que as passagens textuais se conciliavam com ilustrações desenvolvidas por ela mesma. A forma plástica coroou-se como central e sua produção pictórica tornou-se principal, mas a tensão entre imagem e palavra  permaneceu em sua obra.

O trajeto literário remontado na/pela tela influencia palavras soltas, de cunho prospectivo, as quais transladam o mistério que paira sobre esses cenários para um local de esperançamento. ‘‘Onça, espera, evidenciar, promessa’’ conclamam tantos significados altivos quanto aguerridos. Existe, como já dito, uma certa agonia na composição pictórica, afirmada em rostos deformados, e numa paleta cromática sóbria. Entretanto, a singela aplicação desses dizeres projetam a vitória de lutas continuamente travadas.

Estas materialidades discursivas recorrentes na poética de Neves mais acrescentam mistérios do que evidências claras, mesmo que a luz dos dados autobiográficos citados possam indicar caminhos de leitura possíveis. Essa relação mista se ancora na estética do hackeamento, nos jogos sugeridos por Jota Mombaça (2019), os quais propoem ‘‘entregar não entregando’’.

Neves, por sua vez, pratica capoeira. Se é dança, se é luta, se é jogo, a capoeira é mais do que uma categoria estática, é uma ética de vida. Esse mistério que paira sobre sua definição é o mesmo que imanta as cenas e os fenômenos das obras da artista, que inclusive afirma que o ‘‘meu processo de criação parte da busca por solucionar o mistério de uma imagem’’, entretanto, antes de solucioná-los, as narrativas se embebedam da dúvida e acolhem a tensão e a dúvida o de ser, existir e pertencer em conjugação com o que nos cerca.

A figura nas obras de Ana Neves, é definida pela força e pela intensidade com que surge no espaço da tela, propondo sensações tão diretas quanto dúbias. A figura aqui é, portanto, uma tentativa de dar expressão às forças da errância que incidem e atravessam o corpo.

 

Texto: Walter Arcela.

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