

Diogum
Diogo José de Oliveira cresceu, literalmente, entre o ferro e o fogo. Filho de um exímio serralheiro do bairro de São José, uma das três ilhas centrais do Recife, teve na idade adulta a percepção da ancestralidade e do poder libertador, concreta e simbolicamente, dos elementos com os quais a família tinha forjado a vida. Grades que guardam, adornam, encerram, interditam. Abrem, convidam, integram.
Mais de três mil anos antes do nascimento do artista, o ferro era elevado à extensão social do corpo. Forjou pontes e cidades. Fundou a metalurgia. Disseminou armas entre guerras e camadas oscilantes das sociedades. Capturou e torturou metade da humanidade conhecida ou por conhecer. Forneceu em carnes e espíritos os insumos de uma indústria global da escravidão como pedra de assento da chamada modernidade – uma humanidade subpessoalizada, perversa e estrategicamente, com origem em África.
O ferro fez da humanidade geografias. Fundiu-se nos inversos de seu fogo.
Da África aos novos campos onde o Brasil açucareiro se ia fermentando, o metal fez surgir uma ampla ferramentaria de artefatos basilares para a interação entre o mundano e o sagrado. Uma metalurgia lúdica, tácita, intuitiva, para a reafirmação das identidades, mais coletivas ou individualizadas, soterradas como premissa da modernidade.
Não por acidente poético, Diogum apreende a tradição das joias de crioula no encontro dos séculos 19 e 20. Interditadas no uso da joalheria branca, pretas livres constituíam novas e polimorfas camadas médias da sociedade. Passaporte para as ruas, o ofício de quituteira guarnecia essas damas de tabuleiros com um novo tipo de existência social.
Dos balangandãs confeccionados por ourives negros em símbolos mundanos ou terrenos no adorno de seus colos e ventres, surgem, agora, das mãos do artista, colares enormes para a carnalidade em ferro das intenções e arquétipos de orixás, entidades a eletrificar ligações com o orun e a arar caminhos em terra.
Ao incorporar o nome de seu orixá à própria identidade, Diogum não apenas amplia com perícia pouco comum a grande tradição ferreira dos povos de origem em África no Brasil. Atualiza temas da diáspora em objetos-metáfora que libertam e conduzem, retêm ou aprisionam. Ferro e fogo. Alusão dialética ao oceano histórico de ir-e-vir de um Atlântico Negro.
Amante de feijoadas sedosas e de estradas, Ogum é o orixá das tecnologias.
Sem seus conhecimentos e consentimento, não se transforma metal em ferramentas.
Com a discrição elegante de fogo a dançar ferro, a obra de Diogum tem-se espalhado em pontos interessantes para a reversão das perspectivas da diáspora. A história oficial da arte, sabemos, tem sido a história da erudição de suas elites. Desde Eckout e dos viajantes cronistas até a modernidade como autonomia artística, a narrativa visual se oficializa pelo olhar central dos donos de jazidas, não dos donos do ferro.
Amante de festas e de carinho materno, Ogum é o orixá das artesanias.
Sem seus conhecimentos e consentimento, não se transforma metal em encontros.
Poeticamente contundente sobre a afirmatividade do metal para os povos que dele se apropriam, uma expressão em iorubá poderia solenizar “o amor pelo ferro”.
“Ferro ifé!”, sauda-se o metal amigo.
Ao incorporar o orixá a seu nome, e o ferro à extensão das mãos, Diogum não é apenas zeloso guardião ou exímio ampliador. Agente e correligionário do ferro, faz dele esculturas que desfiam movimentos ou encenações em grande leveza ótica. Desobedece com intimidade, o artista, o peso mesmo do material que lhe pesa em mãos e fornalha. Em papel de fogo, Diogum desenha com o ferro.
Amante da briga justa e da palavra-conciliação, Ogum é um orixá das diplomacias.
Ao fazer, do ferro, técnica e simultânea ontologia, Diogum não é apenas filho ou signatário. Se faz presença de Ogum em terra.
Texto: Bruno Albertim
Obras


Ofá de parede (ferramentas, folha de ogum e avivi de ossain), 2024
Diogum
ferro | 60 x 60cm


Ofá de parede (âncora yemanjá, machado de xangô, folha de oxóssi, abebé de oxum), 2024
Diogum
ferro | 60 x 60cm


Ofá de parede (abebé de oxum, tridente de exú, peixe yemanjá, machado de xangô), 2024
Diogum
ferro | 60 x 60cm