C
Marlan Cotrim
27/11/25
Marlan Cotrim
Data
27/11/25
Artista
Marlan Cotrim
Curadoria
Ariana Nuala
“C” é uma letra que se abre como um arco — início de círculo, cavidade, concha. Em Marlan Cotrim, esse C aglutina quatro forças: cloro, carvão, calor e cor. Partir do preto é acolher um corpo sem reflexo; insistir no preto é ativar a luz que ele emite quando aquecido. Entre têxtil e terra, entre química e corporeidade, a artista coreografa faz um gesto simples e radical de corroer a cor.
Começa com tecido preto. Sobre essa superfície de absorção — que, na ótica, retém quase todo o espectro incidente — a artista aplica cloro, agente oxidante historicamente associado à brancura industrial e à limpeza como valor moral. O cloro corrói o pigmento e exuma o algodão por baixo; desenha linhas sinuosas, curvas, tremores — paisagens por subtração. Onde antes havia um “sem espelho”, abre-se uma luminosidade própria, esbranquiçada, irregular, quase térmica. O desenho acontece a partir da reação. A imagem nasce do atrito entre um preto que absorve e um reagente que alveja.
Esse processo convoca uma arqueologia do tecido. Voltemos ao algodão colonial, às plantations, à instituição da brancura como norma estética e política, à cadeia industrial que transformou alvejantes em promessa de pureza, progresso e higiene. Se o século XIX consolidou o mito sanitário e sua gramática — purificar, branquear, higienizar —, hoje reconhecemos seus rastros: águas contaminadas, cadeias de trabalho precarizadas, imaginários que ainda associam claro = limpo = universal e escuro = sujo = outro. O gesto da artista devolve fricção a essa história: aqui, alvejamento não é acabamento, mas contradição exposta. O tecido, fetiche e mercadoria, volta a ser matéria. Planta, suor, química, tempo.
No eixo conceitual, a artista convoca a figura do corpo negro (da física): modelo ideal que absorve toda radiação incidente, transforma em calor e emite conforme a temperatura. É uma chave para pensar a diferença entre refletir e pôr-se para dentro, e se um corpo que não devolve a imagem imposta metaboliza o mundo e devolve outra frequência? Denise Ferreira da Silva tem insistido na potência da luz negra e de uma imaginação que desloque o “universal” branco: aqui, o preto não é ausência — é infraestrutura de cor.
O exercício entre temperaturas e frequências, que atravessa também os títulos das dez telas compostas em 2025 — 28 °C, 500 °C, 600 °C, 830 °C, 930 °C, 1000 °C, 1400 °C, 1500 °C, 5500 °C e 10 000 °C —, marca a passagem do absorver ao emitir. Aqui, a cor se revela como função térmica, mais do que simples pigmento. Cada temperatura corresponde a uma tonalidade específica: a cor que o corpo negro emite ao atingir certo grau de calor, revelando uma escala sensível entre matéria, energia e luz.
Se o cloro dirige-se ao branco e à neutralização — encenando a velha fantasia de “apagar diferenças” —, o carvão opera por outra via: adensa o escuro, filtra, retém. No processo de Marlan, o carvão surge como aglutinador que reaviva escuros, aprofunda sombras e, por combustão simbólica, convoca o calor. Entre o cloro (que desfaz ligações) e o carvão (que condensa e emite quando aquecido), delineia-se uma dialética da purificação: destruição versus absorção. Uma higieniza por eliminação; outra limpa por retenção. No atrito entre ambas, a artista abre um campo termo-político onde energia, corpo e poder circulam: quem suporta o calor? quem controla a queima?
A noção de “coal queer” (carvão queer), apresentada por Kathryn Yusoff, atravessa essa constelação: pensar o carvão como matéria híbrida, feita de vidas comprimidas, que desvia cronologias lineares e dissente de purezas minerais. Ao trazer essa chave para o Brasil, ecoam nossas frentes de minério e carvão, nossos corpos-lugar marcados por poeiras, fuligens e febres. O carvão não é apenas rocha queimada, nem madeira que queimamos; é um parente profundo, um arquivo de mistura e resiliência. Em Marlan, ele se torna também cor — participa do desenho e aciona uma memória sanguínea de trabalho, cuidado e ferida.
No plano das imagens, o traço que o cloro abre no tecido lembra rios em cheia, mapas de calor, derretimentos e falhas geológicas. Há uma coreografia do tremor: linhas que não se estabilizam, bordas que esfumaçam, horizontes que aparecem e desfazem. As obras são abstratas, mas ativam fabulações de paisagem: cada pessoa espectadora compõe seu território conforme a cadência com que o preto desanuvia. Por vezes, fagulhas de cor irrompem — resíduos do diálogo tecido preto–cloro–carvão — como se a matéria anunciasse, por breves instantes, outras temperaturas de visível.
Esse pensamento do corpo sem reflexo — absorção, não-espelho — não se limita ao tecido. Ele se tridimensionaliza nos Mantos (2025), cerâmicas articuladas, peças de barro com pesos e tons diversos, furadas, queimadas em alta temperatura e unidas por cordões de algodão. São anti-monumentos: recusam verticalidade e fixidez; pedem toque, ritmo, corpo. Ao serem manipuladas, cedem; ao encostarem entre si, soam. Ao contrário do monumento rígido, que impõe uma memória única, os Mantos aceitam o desequilíbrio (tombam, mas não caem): memória como articulação. A escultura deixa de “erguer” para tecer chão, conectar fragmentos, ensaiar comunidade. O calor do gesto — mão sobre barro, fricção, som — fecha o circuito termodinâmico da exposição: corpo ↔ matéria ↔ energia.
“C” é, então, um alfabeto térmico. C de corpo negro (física) que absorve e emite; C de carvão que condensa e aquece; C de cloro que rasga e revela; C de calor que move; C de cor que nasce do atrito. Ao friccionar química, história do tecido e crítica da brancura, Marlan Cotrim nos convida a ver em infravermelho: aprender com as diferenças de temperatura, reconhecer quem foi transformado em superfície de projeção e devolver ao preto sua condição de emissor — não como espelho do universal, mas como origem de uma luz infinita e inapreensível.
Ariana Nuala
Curadora