
Mostra Acervo por Diogo Viana e Cecília Lemos
13 artistas
23/05/25 13/06/25
Eudes Mota
Data
11/09/06 28/10/06
Artista
Eudes Mota
Curadoria
Gilberto Habib
Eudes Mota: o olhar de lince sobre a nossa cotidianidade
Anco Márcio Tenório Vieira
Roland Barthes dizia que o signo “saudável” é aquele que não tenta se fazer passar por “natural”, mas o que reitera sua própria arbitrariedade, sua própria condição de artificialidade e, principalmente, de relatividade. Nas artes, Barthes acusava o Realismo, seja ele plástico ou literário, de querer encobrir o fato de que a linguagem é uma construção humana. Para os realistas, a linguagem é algo natural, que fala e retrata a realidade sem a “deformar”, apresentando o mundo e as coisas “tal como ele é”. Uma característica da Arte Moderna, das vanguardas das primeiras décadas do século XX, é o signo que se auto-proclama arbitrário, artificial, deformado, relativo, ou, como quer Barthes, “saudável”. Toda a Arte Moderna, indiferente do ismo, é um elogio a esse signo “saudável”. Mesmo quando o artista busca imprimir uma “narrativa” realista à sua pintura, a exemplo de Salvador Dali, o que está retratado é um discurso que foge de qualquer possibilidade realista: o sonho, o onírico, o automatismo psíquico.
Creio que, entre os modernos, ninguém perseguiu com mais acuidade o signo “saudável” do que Piet Mondrian. Iniciando sua carreira plástica como expressionista, Mondrian foi, passo a passo, dirigindo suas preocupações para um signo que, ao tempo que fosse puramente plástico, fosse claramente arbitrário. O uso das cores primárias em uma mesma tela e suas possíveis possibilidades de composição plástica, explodiram por definitivo a relação entre o signo e o seu referente. Com Mondrian, a realidade se viu banida do mundo da representação artística, restando apenas a composição das cores na tela e, por sua vez, as suas possíveis tensões.
Se Mondrian baniu a mimetização da realidade das artes plásticas, esta, agora enquanto simulacro, foi recuperada na segunda metade do século XX pela Pop Art. Partindo de signos cotidianos da indústria cultural (ícones da cultura, como Marilyn Monroe e Goethe, ou objetos do dia a dia da cultura de massa ou erudita), a Pop Art traz para o primeiro plano objetos que, de tão banalizados pelo uso diário, simplesmente pareciam não ter nenhum valor para a memória afetiva do homem contemporâneo. O fato é que se tanto o neoplasticismo de Mondrian quanto a Por Art apostam no signo “saudável”, a cesura entre uma e outra vanguarda artística está no excluir ou no acatar a realidade visível.
Creio que falar do trabalho de Eudes Mota é discorrer sobre um artista plástico que dialoga com esses dois discursos distintos da arte do século XX. Assim como Mondrian e os artistas da Pop Art, Eudes Mota reitera o valor do signo “saudável”. Porém, persegue-o de uma maneira muito particular: buscando em determinados ícones do mundo contemporâneo sua inspiração. Armado dos pressupostos que fundamentaram o Neoplasticismo ou a Arte Abstrata, Eudes busca no cotidiano, naqueles mesmos objetos que serviram de inspiração para os artistas da Pop Art, sua matéria prima. No entanto, diversamente do que foi realizado por um artista como Andy Warhol, que foi mimetizar em suas obras a embalagem de algum produto industrializado, Eudes vai resgatar dessa mercadoria não o aparentemente óbvio: os signos que a caracterizam de outros produtos industrializados, e sim o que há de mais abstrato e arbitrário entre os signos que compõem uma embalagem: as barras de leitura. Se a barra de leitura é, hoje, um elemento primordial da embalagem, ele também é o signo mais explicitamente arbitrário que ali está colocado. Tão arbitrário que precisa de uma leitura ótica para decifrá-lo. E o que dizer do alfabeto Braile que, contrariando toda a tradição ocidental ou oriental de constituir um alfabeto que é para ser lido visualmente, firma-se por ser algo que é arbitrário sobre algo que nasceu de forma arbitrária: o alfabeto. Vemos o Alfabeto Braile, mas ele nada nos diz. Sua decodificação não passa por aquele que é considerado o mais nobre dos sentidos humano, e sim pelo tato.
Nessa linha de perseguir e resgatar do cotidiano signos radicalmente “saudáveis”, signos que poderíamos denomina-los de metasignos, Eudes nos oferece uma nova série de trabalhos: a Cruzada Gravada. Trabalho em água-forte, em número de 10, o trabalho de Eudes novamente une o rigor plástico de um Mondrian ao espírito da Pop Art de resgatar do cotidiano signos banalizados. Neste caso, seu olhar se volta para as palavras cruzadas. Objeto que se caracteriza tanto pelo rigor construtivo quanto por ser algo de uso cotidiano, banal, que podemos encontrar diariamente nas secções de “diversão” dos jornais ou na banca de revista. Mais: sendo um trabalho em água-forte, sem cor, em relevo, a Cruzada Gravada não somente reitera o diálogo de Eudes com as suas duas famílias espirituais citadas, como abre, de maneira particularmente original, a possibilidade de se redimensionar a própria idéia do signo “saudável”. Seu arguto olhar de lince vai além tanto da arbitrariedade do signo pensada por Mondrian, bem como do que a Pop Art acatava como signos cotidianos dignos de serem elevados ao panteão das artes. Para o primeiro, Eudes responde com a pureza de uma textura plástica sem cor, unindo a liberdade do olhar e do tátil. Para a Pop Art, Eudes responde com o signo do signo cotidiano, o arbitrário do arbitrário: o que vemos, mas que não podemos saber o que é, o que explode o referente e, contraditoriamente, compartilha conosco o nosso cotidiano.
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ESPÓLIO DE SI MESMO
Eudes Mota completa quarenta anos de carreira. No lugar de uma exposição retrospectiva, a iniciativa de realizar uma mostra inédita enfatiza a preocupação do artista em seguir focado no trabalho por se realizar. A escolha do título Espólio, no entanto, trata de compor a mostra com imagens buscadas desde a origem, na trajetória de seu repertório poético. Trajetória que serve para considerarmos algumas
transformações ocorridas no pensamento sobre a arte, ao longo dos anos de transição para o século XXI.