Clara Moreira

Fúria da fita vermelha

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  • Data

    26/06/25 25/07/25

  • Artista

    Clara Moreira

  • Curadoria

    Ariana Nuala

Em muitas narrativas míticas, a fúria se apresenta como descontrole ou ameaça, exercendo também uma função como força liminar que transforma a ordem dos mundos. Divindades de diferentes tradições se alimentam dessa energia vital, vibrátil, quase indomável. É impulso que atravessa a matéria e contorce os rumos previamente traçados. Na Grécia, a história conta que Esquilo, em uma de suas tragédias, reuniu cinquenta pessoas no palco para representar as Fúrias, entidades míticas da vingança. O impacto foi tamanho que parte da plateia desmaiou. A fúria, nesse caso, não foi apenas encenada — ela foi sentida e vivida. De maneira sortida, a fúria não pertence apenas ao universo greco-romano — ela encarna diferentes cosmologias que instigam um processo de canalização das forças vitais e de transformação imediata, que não passam como sinônimos de castigo ou culpa. Nestes atos, esse impulso remete à coragem, ao movimento e à necessidade da ira como um calor de transmutação.

A fúria, tal como aparece nessas histórias, não se limita ao campo do simbólico — sua manifestação se dá no corpo, e talvez seja justamente essa encarnação que entrelace essas narrativas aos desenhos de Clara. O que importa, talvez, não seja o nome que cada tradição lhe dá, mas a forma como ela se aloja na carne, como se anuncia nos tremores, nas rupturas. Quando encarnada, a fúria insiste. E é nesse estado de passagem, entre o dentro e o fora, que ela transforma: não como uma catástrofe pessimista, mas como uma fissura que se abre no meio da vida e reorganiza o que parecia dado.

Muito próxima deste último ponto, fúria da fita vermelha, de Clara Moreira, investiga a força como parte de um cotidiano íntimo, lento e persistente. O que pulsa em seus desenhos são pequenas explosões — acúmulos de gestos que se repetem até alcançarem o ponto de ebulição. O que se dá ali, no tempo do desenho, é uma outra disposição: estar com o corpo entregue ao papel, à superfície que se deixa ativar. Clara desenha como quem escuta algo que ainda não foi dito — ou que talvez habite um silêncio anterior à linguagem. O traço evita a ilustração; prefere conviver com o corpo em sua concretude.

O autorretrato se dá como situação compartilhada com o próprio arquivo de ações — e o que brota, nesse entre, vibra entre o controle e a perda. O corpo se apresenta em estado de escuta, tateando seus próprios limites na fricção com o dançar — aquele que se desenha em pequenas transgressões, torções, hesitações do cotidiano.

Seis desenhos em grande formato compõem uma instalação disposta como uma cúpula aberta, onde o público pode se aproximar e ser também engolido por essas presenças. Não há imposição, mas sim uma oferta: entrar na dança que ali acontece, acompanhadas de uma paisagem sonora que é muito comum aos ouvidos da pessoa que desenha. As figuras da cúpula, sempre em estado nu, carregam apenas uma fita — vermelha ou não — que ora conduz, ora é conduzida. Quase como um auto-títere, elas se apresentam, porém não parecem manipuladas, mas sim fazendo um pacto com sua fúria: um jogo a dois que se relaciona entre o improviso e a curiosidade que envolve relacionar-se com um corpo externo.

Além da instalação, três outros desenhos habitam o espaço expositivo em posições distintas, como fragmentos de um mesmo corpo expandido. Cada traço sugere inspirar e expirar. O papel, plano e aparentemente estático, revela sua maleabilidade, ativada pelo peso de quem desenha. Cada linha parece conter uma pausa, uma hesitação, uma retomada — como se desenhar fosse também respirar com o papel. A paisagem sonora criada pelo músico Mateus Alves prolonga esse gesto: ela registra o ruído do encontro, a memória e o tempo do corpo em sua delicadeza laboriosa.

Desenhar é dançar com o limite. É escavar os contornos da linguagem recusando a neutralidade do traço para afirmar sua pulsação. A fita vermelha, longe de amarrar ou conter, arde — conduz com precisão a centelha da transformação. Há um ponto crucial quando se pensa o desenho como linguagem: ele não vem depois da ideia. Não ilustra o que já foi concebido. O desenho pensa, e o pensamento é construído com suas linhas estruturantes.

Um último ponto — mas que contorna toda essa conversa: perceber os momentos em que o desenho se aproxima da dança, não como tradução, mas como ressonância direta. Desde quando os movimentos passaram a ser anotados, pensados, esboçados como partituras do invisível, o traço deixou de ser apenas linha para se tornar registro de presença. No trabalho de Clara Moreira, essa escuta do corpo riscando o papel carrega a mesma atenção da coreografia: atenção ao peso, ao ritmo, à interrupção, ao impulso que nasce do atrito entre o dentro e o fora. O desenho dança, não porque se move, mas porque carrega a memória do movimento. Porque pulsa em sua lentidão. Porque transpira o que foi vivido — e ainda assim permanece aberto ao que pode vir.

Ariana Nuala

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