Geometria Descritiva/ Todos os Nomes – Felipe Barbosa e Rosana Ricalde

Saiba mais
  • Data

    20/07/06 30/08/06

  • Curadoria

    Moacir dos Anjos

Duas indagações permeiam constantemente as investidas artísticas contemporâneas: qual o lugar da arte hoje e como ela produz significados? Se é bem verdade que tais colocações poderiam ser estendidas indefinidamente, elas parecem acentuar uma pesquisa sobre as hipóteses de uma experiência da arte no tempo presente. Os trabalhos de Rosana Ricalde e Felipe Barbosa, dois dos mais representativos artistas brasileiros emergentes nestes últimos dez anos, tomam estas perguntas sob o ângulo de seu caráter produtivo: aqui não se trata de modo algum em relacionar produção a uma espécie de “elogio do fazer”, mas em reinventar a prática artística a partir da exploração de códigos e campos que ela mesma descreveu como seus. Isto é, como a arte tem sido feita, que tipo de interlocução (visual) ela elegeu como sua esfera de singularidade e, finalmente, com esta (se) torna real. Rosana e Felipe exploram em suas obras os limiares nos quais uma coisa afirma seu coeficiente de pertencimento e fabricação do mundo, qual o limite entre evidência visual, processos constitutivos e aderência entre objetos, que ora existem como referenciais, ora como análogos.

Modelos visuais, espaciais, construtivos não são inatos. Também se deve ser cauteloso e não reduzi-los a um historicismo, isto é, fazer deles meros produtos passivos de imperativos (o que também seria um apriorismo). Mas, observar estes dois extremos atenta para outro ensaio: detectar como historicamente se constituíram tentativas de produção de um espaço natural. A relação estabelecida entre a arte e os objetos no mundo sempre transparecera que a primeira forneceria dispositivos pelos quais aqueles seriam conhecidos e retroativamente se reprocessariam novamente no indivíduo. Entretanto, não seriam todos estes códigos (a mimese, a perspectiva, o estruturalismo da abstração, etc.) uma coleção de simulacros? As próprias idéias de espelhamento e de um duplo não são antes de tudo invenções de posições relacionais?

A apropriação deste exercício de posicionamentos percorre continuamente os trabalhos de ambos artistas. De um certo modo, podemos tomar suas poéticas como uma espécie de esfolamento de mecanismos originariamente pictóricos: a regulagem de um espaço – a saber, o teatro de posicionamentos acima mencionado (outra coisa senão a invenção do espaço) – muda a freqüência de seu diálogo do preenchimento de um campo (a “tábua” da pintura) para as dinâmicas de seus inúmeros modelos (a “tábua” do jogo da arte e seu desenho). Só existe uma equivalência entre a coisa e seu referencial quando é possível que esta seja atribuída. A questão não é apenas como de fato esta última ocorreria, mas igualmente que movimentos se engendram para tanto. É neste sentido que o simulacro surge como uso e valor inventivo.

Tomemos, por exemplo, as Bolas de Futebol de Felipe Barbosa ou os desenhos de mares e oceanos e Todos os Nomes de Rosana Ricalde. Todos incidem em um mecanismo de analogias: as Bolas às vezes reproduzem a mesma espacialidade ou a estrutura construtiva de seus “originais” – são tão volumétricas ou “escultóricas” quanto aqueles. Em outros casos ela se planifica, se pictorializa e se impõe quase como uma operação brunelleschiana. Nas duas situações, toca-se na mesma inflexão – a intervenção “arte” produz inexoravelmente vínculos a um só tempo de similaridade e diferença: uma coisa (uma bola) é ela mesma quando deixa de o ser, ou só é porque o deixa de ser. Na primeira, a natureza tridimensional e a operação estruturante permitem a transmutação. Na segunda, inverte-se o raciocínio: é o seu desinvestimento para a arena da pintura que torna a própria coisa sua representação, que faz de sua sombra, de seu fantasma sua condição de legitimidade.

Nos trabalhos de Rosana tal raciocínio segue outro percurso: a ligação se dá por uma espécie de evocação, que lida propositadamente com a ausência visual para fazer presente seu objeto. Nos desenhos os nomes saídos da tinta escorrida solidificam mares e oceanos: o mar, mais do que existir em função de sua imagem escrita, se torna matéria ao renegar sua qualidade “natural”, ao perder sua liquidez (a tinta) e fazer-se matéria dura, congelar-se, enrijecer-se como um bronze – oceanos de tinta seca, mar desertificado. São desenhos a um só tempo fotográficos e escultóricos. Todos os nomes acentua este paradoxo: as palavras na fita rotuladora viram retrato-falado, retrato-escrito, e estranhamente um retrato universal, pois o nome, indício primeiro de singularidade, se habilita a designar vários indivíduos ao mesmo tempo – o retrato se torna um contra-senso de descrição e espelho.

A antinomia das sensações culturalmente implícita na arte (a fronteira perceptual entre o ótico e o háptico como raiz de sua tensão espacial) aqui se imprime como mais uma detecção de simulacros. Não se trata unicamente de explicitar o recalque sensitivo que a visualidade demandava para sua efetivação, mas sobretudo em reconhece-la como uma construção, como demonstram os Bichos de Pelúcia (Felipe) e o Ensaio sobre a Cegueira (Rosana). Os bichos de pelúcia são objetos táteis que aqui (até por uma questão de segurança pessoal) precisam ser tornados visuais. É claro que, em primeiro lugar, abraça-los – como usualmente deveria acontecer – produz literalmente a sensação oposta da esperada. Todavia surge entre este comércio uma outra ambigüidade: toca-los (e destruí-los) implica, descobrir que eles só poderão existir no limite do desvanecer. No Ensaio…, de Rosana, a visualidade – desde a sensação em si até a estrutura de sua pirâmide cognoscente – é apontada como o ardil. O que seria “representar” a cegueira, e a partir de qual referencial – o de seu conhecimento externo ou o de quem a vive? Ou ainda, como “descreve-la”? Toda imagem, pouco importa sua natureza, é uma cegueira, pois consiste em (re)produzir aquilo que não está mais disponível aos olhos. Estranhamente, portanto, a visualidade é uma de suas formas, assim como, alterando-se os pólos, a escrita é uma ótica ao potencializar a criação de coisas vistas aquém da retina. No trabalho, a cegueira é a retirada da própria palavra, sempre recortada. Entretanto, é ela quem permite a entrada de luz, base do sentido da visão; por outro lado, é seu o vazio que cria não só a sua ilusão especulativa, como indica a raiz de todas as outras imagens em sua origem puramente mentais.

Reconhecer uma “imanência” aos simulacros, até mesmo revertendo-os à condição de modelos – faz deles e de suas histórias mais do que um mecanismo poético. Eles cogitam a positividade de se transmutarem de índices para matrizes de “objetos de terceira geração”. Uma incisiva demarcação em um mundo que a cada instante reconhece o seu cerco pelas imagens e busca através delas rotas e perspectivas para seu atravessamento. Não se busca, nem se deseja obviamente uma outra ou nova essência – que jamais existiu – e sim a aferição de uma cartografia singular talvez “mimética” (camaleônica) em sua capacidade de descobrir no caráter acidental de tudo uma vibração movediça do mundo.

Guilherme Bueno

Imagens

Conheça também

Ver todas

Mostra Acervo por Diogo Viana e Cecília Lemos

13 artistas

23/05/25 13/06/25

Explore

Tocar o céu com as mãos

12 artistas

20/02/25 30/04/25

Explore