
Mostra Acervo por Diogo Viana e Cecília Lemos
13 artistas
23/05/25 13/06/25
Data
20/07/06 30/08/06
Curadoria
Moacir dos Anjos
Duas indagações permeiam constantemente as investidas artísticas contemporâneas: qual o lugar da arte hoje e como ela produz significados? Se é bem verdade que tais colocações poderiam ser estendidas indefinidamente, elas parecem acentuar uma pesquisa sobre as hipóteses de uma experiência da arte no tempo presente. Os trabalhos de Rosana Ricalde e Felipe Barbosa, dois dos mais representativos artistas brasileiros emergentes nestes últimos dez anos, tomam estas perguntas sob o ângulo de seu caráter produtivo: aqui não se trata de modo algum em relacionar produção a uma espécie de “elogio do fazer”, mas em reinventar a prática artística a partir da exploração de códigos e campos que ela mesma descreveu como seus. Isto é, como a arte tem sido feita, que tipo de interlocução (visual) ela elegeu como sua esfera de singularidade e, finalmente, com esta (se) torna real. Rosana e Felipe exploram em suas obras os limiares nos quais uma coisa afirma seu coeficiente de pertencimento e fabricação do mundo, qual o limite entre evidência visual, processos constitutivos e aderência entre objetos, que ora existem como referenciais, ora como análogos.
Modelos visuais, espaciais, construtivos não são inatos. Também se deve ser cauteloso e não reduzi-los a um historicismo, isto é, fazer deles meros produtos passivos de imperativos (o que também seria um apriorismo). Mas, observar estes dois extremos atenta para outro ensaio: detectar como historicamente se constituíram tentativas de produção de um espaço natural. A relação estabelecida entre a arte e os objetos no mundo sempre transparecera que a primeira forneceria dispositivos pelos quais aqueles seriam conhecidos e retroativamente se reprocessariam novamente no indivíduo. Entretanto, não seriam todos estes códigos (a mimese, a perspectiva, o estruturalismo da abstração, etc.) uma coleção de simulacros? As próprias idéias de espelhamento e de um duplo não são antes de tudo invenções de posições relacionais?
A apropriação deste exercício de posicionamentos percorre continuamente os trabalhos de ambos artistas. De um certo modo, podemos tomar suas poéticas como uma espécie de esfolamento de mecanismos originariamente pictóricos: a regulagem de um espaço – a saber, o teatro de posicionamentos acima mencionado (outra coisa senão a invenção do espaço) – muda a freqüência de seu diálogo do preenchimento de um campo (a “tábua” da pintura) para as dinâmicas de seus inúmeros modelos (a “tábua” do jogo da arte e seu desenho). Só existe uma equivalência entre a coisa e seu referencial quando é possível que esta seja atribuída. A questão não é apenas como de fato esta última ocorreria, mas igualmente que movimentos se engendram para tanto. É neste sentido que o simulacro surge como uso e valor inventivo.
Tomemos, por exemplo, as Bolas de Futebol de Felipe Barbosa ou os desenhos de mares e oceanos e Todos os Nomes de Rosana Ricalde. Todos incidem em um mecanismo de analogias: as Bolas às vezes reproduzem a mesma espacialidade ou a estrutura construtiva de seus “originais” – são tão volumétricas ou “escultóricas” quanto aqueles. Em outros casos ela se planifica, se pictorializa e se impõe quase como uma operação brunelleschiana. Nas duas situações, toca-se na mesma inflexão – a intervenção “arte” produz inexoravelmente vínculos a um só tempo de similaridade e diferença: uma coisa (uma bola) é ela mesma quando deixa de o ser, ou só é porque o deixa de ser. Na primeira, a natureza tridimensional e a operação estruturante permitem a transmutação. Na segunda, inverte-se o raciocínio: é o seu desinvestimento para a arena da pintura que torna a própria coisa sua representação, que faz de sua sombra, de seu fantasma sua condição de legitimidade.
Nos trabalhos de Rosana tal raciocínio segue outro percurso: a ligação se dá por uma espécie de evocação, que lida propositadamente com a ausência visual para fazer presente seu objeto. Nos desenhos os nomes saídos da tinta escorrida solidificam mares e oceanos: o mar, mais do que existir em função de sua imagem escrita, se torna matéria ao renegar sua qualidade “natural”, ao perder sua liquidez (a tinta) e fazer-se matéria dura, congelar-se, enrijecer-se como um bronze – oceanos de tinta seca, mar desertificado. São desenhos a um só tempo fotográficos e escultóricos. Todos os nomes acentua este paradoxo: as palavras na fita rotuladora viram retrato-falado, retrato-escrito, e estranhamente um retrato universal, pois o nome, indício primeiro de singularidade, se habilita a designar vários indivíduos ao mesmo tempo – o retrato se torna um contra-senso de descrição e espelho.
A antinomia das sensações culturalmente implícita na arte (a fronteira perceptual entre o ótico e o háptico como raiz de sua tensão espacial) aqui se imprime como mais uma detecção de simulacros. Não se trata unicamente de explicitar o recalque sensitivo que a visualidade demandava para sua efetivação, mas sobretudo em reconhece-la como uma construção, como demonstram os Bichos de Pelúcia (Felipe) e o Ensaio sobre a Cegueira (Rosana). Os bichos de pelúcia são objetos táteis que aqui (até por uma questão de segurança pessoal) precisam ser tornados visuais. É claro que, em primeiro lugar, abraça-los – como usualmente deveria acontecer – produz literalmente a sensação oposta da esperada. Todavia surge entre este comércio uma outra ambigüidade: toca-los (e destruí-los) implica, descobrir que eles só poderão existir no limite do desvanecer. No Ensaio…, de Rosana, a visualidade – desde a sensação em si até a estrutura de sua pirâmide cognoscente – é apontada como o ardil. O que seria “representar” a cegueira, e a partir de qual referencial – o de seu conhecimento externo ou o de quem a vive? Ou ainda, como “descreve-la”? Toda imagem, pouco importa sua natureza, é uma cegueira, pois consiste em (re)produzir aquilo que não está mais disponível aos olhos. Estranhamente, portanto, a visualidade é uma de suas formas, assim como, alterando-se os pólos, a escrita é uma ótica ao potencializar a criação de coisas vistas aquém da retina. No trabalho, a cegueira é a retirada da própria palavra, sempre recortada. Entretanto, é ela quem permite a entrada de luz, base do sentido da visão; por outro lado, é seu o vazio que cria não só a sua ilusão especulativa, como indica a raiz de todas as outras imagens em sua origem puramente mentais.
Reconhecer uma “imanência” aos simulacros, até mesmo revertendo-os à condição de modelos – faz deles e de suas histórias mais do que um mecanismo poético. Eles cogitam a positividade de se transmutarem de índices para matrizes de “objetos de terceira geração”. Uma incisiva demarcação em um mundo que a cada instante reconhece o seu cerco pelas imagens e busca através delas rotas e perspectivas para seu atravessamento. Não se busca, nem se deseja obviamente uma outra ou nova essência – que jamais existiu – e sim a aferição de uma cartografia singular talvez “mimética” (camaleônica) em sua capacidade de descobrir no caráter acidental de tudo uma vibração movediça do mundo.
Guilherme Bueno