Marcos Costa

Nada a troco de nada

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  • Data

    02/06/08 01/08/08

  • Artista

    Marcos Costa

Acerca de Nada a Troco de Nada 

 

“O mau-olhado é o fascinum, é o que tem por efeito parar o movimento e literalmente matar a vida.”

Jacques Lacan, in Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise

Entre o olho e o olhar, existe um rasgo de distância que talvez só mesmo a criação de um artista seja capaz de nos mostrar e testemunhar o alcance de um percurso em que se engajou para operar a devida escansão da sua poiesis.

Acompanhar o movimento desse gesto parece-me essencial se a questão da leitura ambiciona, com efeito, encontrar aí, no corpo vivo da obra, algo a partir do qual reconheçamos o artista assumindo uma nova ordem na relação simbólica com o mundo.  E assim o faz Marcos Costa, com este seu mais recente rebento: Nada a Troco de Nada.

Terá sido, como se diz, “a troco de nada” a implicação do artista em obrar tais objetos, indo desde a escolha dos materiais até chegar ao que poderíamos entender como uma espécie de história silenciosa que sutura a ereção de um tema?

Na experiência estética de uma mostra individual, penso que ainda seja relevante tentar aproximar-se de um fio não pelo qual se desvende o mistério do ato criador, mas que, pelo menos, situe-se quanto ao problema da composição narrativa plástico-imagética que estaria em jogo, deslindando-se através dos objetos.

E, no trajeto da mirada em que me lanço em meio a essas obras, entrevejo com alegria Marcos Costa trazendo à tona a questão do movimento necessariamente vital do ato criador.

Poder-se-ia imaginá-lo numa passagem de signos: efetuando a metáfora concreta dos seus passos em direção à criação, logo de início, vestindo as suas sandálias de ferro entre as quais abriga um ovo de madeira.

Os passos do artista com suas sandálias de ferro. Esse acessório que, ao mesmo tempo, é signo de locomoção e inscrição de um rastro sobre a terra. Quem sabe a ironia de um abrigo para os pés de um homem, que caminha carregando o ovo que germina a qualquer momento como fruto do seu movimento? Daí se tem a oportuna ocasião de se pensar sobre a questão da origem. A origem está no meio. No trânsito de uma fecunda caminhada, no meio dos próprios passos, além de todas as geografias… Eis uma lição que não é de pequena estatura.

O ovo, como alguém muito bem já o disse, é um símbolo universal e explica-se por si mesmo. Todavia, não seria irrelevante lembrar que, na Grécia, a palavra hilé, cujo sentido refere-se à matéria-prima, designa literalmente a madeira. Ou seja, a madeira é, por excelência, a matéria. Talvez por isso, o ovo de madeira entre as sandálias de ferro. Então, o ovo, nesse caso, não tem mais nada a ver com os ovos infecundos das discussões teóricas, do conhecimento meramente exterior, em meio às quais se costumam montar debates com indagações estéreis sobre a anterioridade relativa do ovo ou da galinha… Mas, como não pensar, ainda, nessa mesma encenação entre o ovo e as sandálias, os signos protagonizando uma dialética do ser livre e do ser aprisionado? Do aventureiro deixando-se afetar pela paixão dos desafios em contraposição ao regime sedentário do burguês ávido de conforto e comodidade? O artista sabe que ambas as tendências rondam o animal humano.

E, seguindo um pouco mais adiante, outros objetos: Malas em forma de Círculo, Meio-círculo, Retangulares e uma enorme Gota. Tudo em ferro e vidro. E aqui já se vê o trânsito no nível dos materiais no que tange à temporalidade, uma vez que o ferro e o vidro são os materiais que mais emblematizam a modernidade, encarnando-se, desta feita, na floração dessas esculturas no plano da arte contemporânea.

Se, no contexto de uma sociedade liberal depressiva — como parece se caracterizar o mundo contemporâneo, repleto de conformismos e higienismos de toda a sorte, sob as determinações do biopoder —, o afã de alcançar o domínio e a produção da vida nas manipulações genético-laboratoriais desponta como mais um sonho da Ciência, não será excessivo depreender daí que também não é “a troco de nada” a elegante ironia do artista que aqui nos ocupa, ao enfiar, no interior de cada peça, por entre as lâminas de vidro, algo como a encenação de uma dança fecunda entre o espermatozóide e o ovo-óvulo. Pois, ao mesmo tempo, o que seria esse empilhamento de lâminas senão uma sutil alusão ao jogo de lentes que favorecem a visão nos experimentos dos microscópios?

Mas como não perceber, ainda no que concerne a essas Malas onde se esboçam as tais cenas de fecundação, um écran de vidro, uma tela que faz ponte, de repente, entre o pictural e o escultural? Só que, no lugar da superfície de um vidro plano onde reinaria uma suposta transparência, temos o empilhamento das diversas camadas, resultando numa tela opaca, exibindo um verde turvo como tom. É o caso de dizer que aí se expressa o gesto concreto em que o artista sai do plano da simples representação e alcança o da Presentação.

Desse sutil deslocamento entre a pintura e a escultura, reencontra-se também com a presença do desenho a partir do intercâmbio entre as coisas. Desenho que a mão do artista traça no encontro do tapete com a areia. Daí, emerge a imagem que conjuga a tensão ambígua de uma Borboleta numa Cabeça de Touro. A borboleta salta como uma espécie de terceiro olho… Borboleta desterrada num sobrevôo, para além da trama do tapete…

Na literatura, temos o caso do personagem Papillon, que também significa borboleta, prisioneiro obsedado pela liberdade, conseguida após efetuar um salto, sobre a sétima onda do furioso mar, do penhasco da ilha-presídio donde, até então, ninguém havia conseguido sair. Quiçá seja o caso de fazermos aqui certa analogia e reconhecer, nesse desenho-instalação, a própria metáfora do ato livre da criação. Não por acaso, esse terceiro olho em forma de borboleta ejeta-se da terra, deixando para trás toda a dualidade conflitual que dá suporte à dialética do Bom ou Mau-olhado, negatividade mórbida da idéia da queda, da deposição do olhar, o olhar da Representação, do Ser da Falta, que tanto alimentou o encanto da metafísica triunfante no Ocidente, de Platão a Lacan.

E, enfim: As Taças assumindo a forma de uma Ampulheta. O artista parece querer chamar a atenção, agora, para o coração de uma temporalidade genuinamente particular. Um tempo gerador de tudo o que se realiza. E, aqui, penso no tempo vivo da Duração, da Durée que Henri Bergson tanto reivindicou para trazer de volta o verdadeiro sentido da mudança e do movimento. Tempo-criador, cuja substância é o sentido incessante do diferenciar-se de si. A alteração é a sua substância. Aliás, se for o caso de arriscar uma definição para o verdadeiro artista, diria que este é, justamente, aquele que está sempre sendo diferente de si mesmo.  E não teria sido precisamente isso que Marcos Costa nos demonstra com essa torção da taça, que é também a torção do tempo ordinário, presumível nas ampulhetas?  Mas, como dizíamos no início, entre o olho e o olhar existe uma distância insuspeitada… Um abismo que só na temporalidade singular que se desprende do evento pelo qual o artista atinge o tão caro terceiro olho e reencontra a sua mais íntima intuição originária, que o impeliu ao trabalho de criação.

Tal como borboleta desterrada, Marcos dá um salto sem se deixar capturar pelas redes e facilidades dos apelos nos arquétipos de um imaginário regional e faz seu sobrevôo, com elaborada sofisticação, sem medo do belo. Proeza realmente feliz e intrigante para uma época em que o culto escatológico da miséria e do grotesco é, cada vez mais, a bola da vez… Pois bem, aí está. Quem mais se arriscaria numa hipótese de beleza e de felicidade na Capitania de Paranambuco?

 

Carlos Mascarenhas

Psicólogo, Cancionista e Doutor em Letras.

 

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