Diogum

O Atlântico Negro de Diogum

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  • Data

    05/07/24 05/09/24

  • Artista

    Diogum

  • Curadoria

    Bruno Albertim

Diogo José de Oliveira cresceu, literalmente, entre o ferro e o fogo. Filho de um exímio serralheiro do bairro de São José, uma das três ilhas centrais do Recife, teve na idade adulta a percepção da ancestralidade e do poder libertador, concreta e simbolicamente, dos elementos com os quais a família tinha forjado a vida. Grades que guardam, adornam, encerram, interditam. Abrem, convidam, integram. 

Mais de três mil anos antes do nascimento do artista, o ferro era elevado à extensão social do corpo. Forjou pontes e cidades. A metalurgia. Disseminou armas entre guerras e camadas oscilantes das sociedades. Capturou e torturou metade da humanidade conhecida ou por conhecer. Forneceu em carnes e espíritos os insumos de uma indústria global da escravidão como pedra de assento da chamada modernidade – uma humanidade subpessoalizada, perversa e estrategicamente, com origem em África. 

O ferro fez da humanidade geografias. Fundiu-se no inversos de seu fogo. 

Da África aos novos campos onde o Brasil açucareiro se ia fermentando, o metal fez surgir uma ampla ferramentaria de artefatos basilares para a interação entre o mundano e o sagrado. Uma metalurgia lúdica, tácita, intuitiva, para a reafirmação das identidades, mais coletivas ou individualizadas, soterradas como premissa da modernidade. 

Não por acidente poético, Diogum apreende a tradição das joias de criola no encontro dos séculos 19 e 20. Interditadas no uso da joalheria branca, pretas livres constituíam novas e polimorfas camadas médias da sociedade. Passaporte para as ruas, o ofício de quituteira guarnecia essas damas de tabuleiros com um novo tipo de existência social. 

Dos balangandãs confeccionados por ourives negros em símbolos mundanos ou terrenos no adorno de seus colos e ventres, surgem, agora, das mãos do artista, colares enormes para a carnalidade em ferro das intenções e arquétipos de orixás, entidades a eletrificar ligações com o orun e a arar caminhos em terra.

Ao incorporar o nome de seu orixá à própria identidade, Diogum não apenas amplia com perícia pouco comum a grande tradição ferreira dos povos de origem em África no Brasil. Atualiza temas da diáspora em objetos-metáfora que libertam e conduzem, retêm ou aprisionam. Ferro e fogo. Alusão dialética ao oceano histórico de ir-e-vir de um Atlântico Negro. 

Amante de feijoadas sedosas e de estradas, Ogum é o orixá das tecnologias. Sem seus conhecimentos e consentimento, não se transforma metal em ferramentas. 

Com a discrição elegante de fogo a dançar ferro, a obra de Diogum tem-se espalhado em pontos interessantes para a reversão das perspectivas da diáspora. A história oficial da arte, sabemos, tem sido a história da erudição de suas elites. Desde Eckout e dos viajantes cronistas até a modernidade como autonomia artística, a narrativa visual se oficializa pelo olhar central dos donos de jazidas, não dos donos do ferro. 

Em 2019, ao lado da companheira e também artista Sil Karla, Diogum participou de uma grande coletiva em Paris, organizada na Galeria Nesle, em Saint-Germain-des-Prés, pela Art Freedom. O objetivo era reunir artistas de origem africana dispersos pelo mundo por meio da perversa e gradual diáspora da escravidão colonial. Neste ano corrente, o curador Marcelo Campos requisitou quatro painéis em torno do pássaro sagrado de Oxóssi para evidenciar, em coletiva, como a poética do moderno Francisco Brennand nutriu-se tanto de Picassos e Gauguins como de uma menos assumida cosmologia africana. 

Um de seus ofás, símbolo de Oxóssi na fusão de arco e flecha, está na coleção de novíssimoss contemporâneos da Fundação Roberto Marinho. Uma de suas sereias-pássaro habita a Casa do Rio Vermelho. Quando Maria João, neta dos escritores, convidou o artista para instalar um relicário da memória de Jorge Amado e Zélia Gattai sobre a piscina do casarão baiano onde o casal viveu e criou, Diogum uniu um “ofá” – símbolo do orixá caçador que regia a cabeça de Jorge – à uma sereia – alusão à Oxum, dona das águas doces, regente da cabeça de Zélia. 

Neste julho materno de 2024, a Galeria Amparo 60 acolhe a primeira exposição individual de Diogum. 

Amante de festas e de carinho materno, Ogum é o orixá das artesanias. Sem seus conhecimentos e consentimento, não se transforma metal em encontros. 

Poeticamente contundente sobre a afirmatividade do metal para os povos que dele se apropriam, uma expressão em iorubá poderia solenizar “o amor pelo ferro”. 

“Ferro ifé!”, sauda-se o metal amigo. 

Ao incorporar o orixá a seu nome, e o ferro à extensão das mãos, Diogum não é apenas zeloso guardião ou exímio ampliador. Agente e correligionário do ferro, faz dele esculturas que

desfiam movimentos ou encenações em grande leveza ótica. Desobedece com intimidade, o artista, o peso mesmo do material que lhe pesa em mãos e fornalha. Em papel de fogo, Diogum desenha com o ferro. 

Amante da briga justa e da palavra-conciliação, Ogum é um orixá das diplomacias. 

Ao fazer, do ferro, técnica e simultânea ontologia, Diogum não é apenas filho ou signatário. Se faz presença de Ogum em terra. 

Bruno Albertim.

Imagens

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