Oriana Duarte

Plus Ultra

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  • Data

    10/03/07 14/04/07

  • Artista

    Oriana Duarte

  • Curadoria

    Cristiana Tejo

O corpo como ruído

Oriana Duarte deseja que seu corpo seja ruído. Na paisagem urbana do Recife, no universo masculino do remo, nos estereótipos contemporâneos que reificam o corpo feminino, nas delimitações dos campos da arte e dos esportes. Esse estado de desafio de limites, no mais amplo sentido da palavra, é constante em seu trabalho e se depura nos últimos anos, com sua pesquisa sobre esportes radicais, práticas esportivas que se alimentam do risco e da transposição de obstáculos (praticamente metáforas do próprio posicionamento da artista no campo da arte). Em Os Riscos de E.V.A. (2003–2004), pesquisa selecionada no 45º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, Oriana Duarte iniciou uma criteriosa preparação para executar um ato poético e extremo: semear flores no cânion do Rio São Francisco num salto de bungee jump. Querer Viver (2004), exposição acontecida na Torre Malakoff que se apresentava como uma resposta poética ao processo de pesquisa de Os Riscos de E.V.A., abarcava vídeos que equilibravam força e resistência (aula de chutes e socos) e delicadeza e precisão (produção de um perfume).

Plus Ultra completa uma trilogia de investigação e intervenção da artista no mundo dos esportes e do embaralhamento dos códigos masculino e feminino. O trabalho bifurca-se em duas rotas: vermelha e azul. A Via Vermelha, capitaneada pelo vídeo homônimo, transmite uma ambiência ambígua, apolínea e que atualiza uma visão cunhada na estatuária da Antiguidade Clássica de enaltecimento do corpo do homem e dos esportes (como arena de exibição da bravura, da superação e do equilíbrio entre mente e corpo, qualidades admiradas e entendidas como belas apenas para os homens). No entanto, o pensamento de Michel Foucault sobre o adestramento do corpo para o esporte é a referência que alimenta diretamente a artista. O conteúdo do vídeo exibe aspectos estéticos do mundo do remo, como a atuação dos corpos masculinos que animam as embarcações e o design dos barcos específicos para a modalidade. Virilidade, força e desempenho afloram concomitantemente na seqüência de fotografias que focalizam o esforço de Oriana em sua preparação física diária e sistemática. Os ângulos escolhidos substituem a imagem usual da suavidade feminina pela resistência e extenuação, que passam a ser contempladas, igualando a artista — elemento duplamente estranho no meio do remo — ao seu entorno adotivo. Ela não deseja que seu corpo seja admirado pela beleza, mas apreendido por sua funcionalidade e imperfeição. A escolha do vermelho aviva os tons da energia física, do combate, da agressividade e da liderança associados à cor e considerados como essência masculina. Corpoponte, conjunto de desenhos, entretanto, faz contraponto. Os traços delicados em nanquim fundem o corpo de Oriana Duarte às pontes, elementos arquitetônicos característicos do Recife e que denotam solidez. Irradia-se graciosidade e espontaneidade nas sobreposições de transparências e linhas suaves, incorporando, ao ambiente vermelho, vulnerabilidade e desejo. A presença do esquife utilizado pela artista em seus treinos e re-contextualizado na esfera da arte corrobora para a leitura estética da atividade. Ela enxerga em seu formato indícios da anatomia feminina, mais um curto-circuito de códigos.

Adentrando a Via Azul, que nomeia o segundo vídeo da exposição, encontramos serenidade. O ambiente convertido em azul exala intimidade e aconchego. Almofadas reluzentes abraçam os corpos dos visitantes que se deixam perder na travessia ritmada e mais lenta do que o habitual no remo pelo Rio Capibaribe. Diante do monitor de TV, nossos olhos fixam-se no horizonte, norte da remadora-artista em seu descortinar da cidade, sozinha no mundo, e são hipnotizados pela cadência dos movimentos da embarcação. De dentro do rio, Recife parece adormecida e silenciosa. Até mais bela. Não podemos sentir seu cheiro, uma propriedade marcante para os que convivem com essas águas, mas a artista relata que, no interior do espesso rio[1], a partir de suas entranhas, o odor é diferente do que sentimos em terra firme. Aliás, o rio seria um não-lugar, que altera a percepção prévia da cidade e evidencia uma dinâmica muito diferente do estabelecido. A passagem por algumas pontes deixa escapar de relance que o passeio não ocorre nos primeiros raios da manhã, mas em plena tarde de um dia de semana. De dentro da calmaria, o movimento do centro da cidade parece pachorrento. A sensação de tempo e espaço não mais corresponde aos parâmetros exatos das ciências de precisão, mas é direcionada pela fluidez do rio. Antepondo-se à rigidez da sala rubra, tudo é fluência na sala azulada. O vestido parece firmamento e curso d’água. Talvez seja o que alinhava o céu e o rio. Ele é feito de segredo e pode ser revelado e escondido. Uma vez desvelado e expandido, o vestido faz da artista rio e não mais ponte.

Richard Sennett, em seu livro Carne e Pedra — o corpo e a cidade na civilização ocidental, demonstra como o corpo feminino foi disciplinado e imobilizado em seu acesso à cidade desde os tempos antigos e tido, durante muitos séculos, como inadequado e impertinente e por isso deveria permanecer recolhido na esfera doméstica. Com seus trabalhos recentes, Oriana Duarte, mesmo sem o propósito declarado, insere-se na genealogia da arte feminista. Não nos termos dos questionamentos iniciais dessa vertente artística, que desafiou os modelos de representação feminina e a baixa representatividade do grupo das mulheres nos anais da História da Arte, mas na investigação das zonas limítrofes entre os princípios classificatórios dos gêneros. Enfrentar a cidade com o corpo é causar ruídos suaves e contundentes.

 

Cristiana Tejo

 

Imagens

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