
Mostra Acervo por Diogo Viana e Cecília Lemos
13 artistas
23/05/25 13/06/25
José Paulo
Data
20/03/02 04/05/02
Artista
José Paulo
José Paulo alterna caminhos, pegadas, com estruturas armazenando conjuntos de ovos de barro, que remetem às polêmicas entre direito e ética da ciência de explorar os códigos de gênesis da vida em um era de dominações tecnológicas e reprodução mecânica. Mas há que se continuar caminhando, contrapondo à trilha do “repetir da história” nos tijolos marcados no chão com a busca pela liberdade na diferença. Repetir e diferenciar é a potência reveladora desta escultura passagem , que se dá pelo reencontro entre arte e caminho de experiências trilhadas simbólicamente por um leitor em movimento, resgatado como caminhante nômade em cada indivíduo, tão imobilizado por uma cultura alienante de imagens do mundo em telas de TV e computador. Cada visitante é convidado a “caminhar, caminhar, caminhar”, para que recupere seu estado de autopoiesis, diferenciação-participação na construção de sentidos no mundo, liberdade de alguém que se descobre capaz de ressignificar a si próprio diante do desconhecido e do imprevisível (o irrepetível).
José Paulo traz esta instalação para a varanda que tem como eixo enigmático um caminho de tijolos marcados repetidamente pela palavra “repetir”. Ambiguamente somos convidados a caminhar para decifrar um paradoxo: como a repetição não pode existir sem a diferença, e inevitavelmente, a diferença não pode prescindir da repetição. A simplicidade dos tijolos repetidos lembram a complexidade de sua identidade “em repetir”. Este projeto especial de José Paulo, passa a fazer parte de nosso repertório de poéticas de infinito. Invoca o caminhar lendo e lento – de um leitor móvel em busca daquilo que revela diferença pelo repetir. Neste precioso elogio à simplicidade do caminhar, José Paulo traz para a experiência a tese do filósofo contemporâneo Deleuze – da fusão entre estes conceitos aparentemente opostos, entre uma pura diferença e a repetição complexa. Se a ciência pela investigação da natureza procura métodos e verificações de leis que se confirmem pela repetição. A arte é pura síntese entre história, repetição e sua ruptura. Não existe oposição entre Repetir e Diferenciar, que se dissolvem um no outro, só pelo caminhar atento que se abre caminho para descobrir, construindo, o espaço – revelando a diferença dentro do eterno retorno do movimento “circular”.
É como se dá também nos movimentos respiratórios – da repetição do respirar se atinge a diferença da inspiração. Mas inspirar e respirar, também se dissolvem dentro de uma única simbiose orgânica, entre o espaço de fora com o de dentro. Com esta instalação, “repetir, repetir, repetir” no círculo da varanda, o arquiteto, ceramista e artista, José Paulo, se inspirou nos tijolos para se tornar um artista construtor de metáforas, jogando com a ambiguidade da existência, não mais um escultor de objetos, mas sim de sínteses entre escultura e caminho, ambiente e ação. Ao descobrir na poética da repetição uma nova categoria de pensar sua criação artística na produção em série de uma fábrica de tijolos, José Paulo teve sem dúvida uma inspiração, da mesma forma que a queda de uma maçã revelou a Newton a lei da gravidade que rege os astros. A poética da repetição/diferenciação se torna a marca da crise de identidade da nossa era, binário polêmico que afeta a própria essência modernista da cultura e sociedade nos últimos duzentos anos: beleza e sublime, tradição e ruptura, massificação e subjetividade.
Mas caminhando, o leitor móvel se descobre em uma leitura de transe e em trânsito, tijolo após tijolo repetem a marca “repetir”, como um mantra, que eleva a finitude humana pela desaceleração do tempo da velocidade, como uma meditação Zen Budista. A repetição é entrada para inúmeras experiências religiosas de ascensão ao sagrado, tanto no ocidente como no oriente, dos cantos dos cristãos primitivos às danças circulares sufis. Mas aqui na varanda, o “Repetir, repetir e repetir”, é caminhando, circulando que se remete também ao arquetipo universal do eterno retorno. Mas, na trajetória da história da arte nada se repete sem que a diferença também se disfarce, e vice-verso, nada surge como diferença (ruptura) sem que a repetição (tradição) também se reconheça. A potência da simplicidade desta obra do José Paulo está justamente na complexidade de sua repetição, que junta ao caminhar como experiência artística contemporânea a religiosa milenar das peregrinações.
Para o artista , como José Paulo compreendeu, as estruturas de imposição de domínios alienantes de cada época devem ser tencionadas ou expressas crítica e poéticamente, para que a arte cumpra a sua função anunciadora do que ainda não está consciente, como um território de autopoiesis (construção recíproca entre artistas, seus leitores e as leituras de mundo). Seus tijolos e ovos de barro engradados em fortes estruturas, não são uma apologia à repetição e à velocidade , pelo contrário, nos colocam diante de uma experiência reflexiva que desafia estas ordens mecanicistas do ser humano, marcado pela aparência superficial da não identidade e da rapidez. Aqui ao marcar cada tijolo de um caminho circular com o verbo de comando –“repetir”, ou numerar os ovos, pode ser muito mais do que voltar a uma crítica à sociedade industrial. José Paulo ultrapassa (repete se diferenciando) as referências das poéticas americanas minimalistas dos anos 70, da apropriação de materiais e peças de reprodução mecânica, da serialidade dos armazenamentos dos parques industriais de Carl Andre, para se alinhar aos artistas que produzem esculturas como caminho, passeios ambientais, tais como Robert Smithson, Richard Long, e os nossos brasileiros geradores históricos de instalações penetráveis (labirintos) como Hélio Oiticica e Lygia Clark, entre outros.
Sua instalação , “Repetir, Repetir, Repetir”, tem uma abrangência que ultrapassa as discussões formais de rupturas do moderno e pósmoderno, pois nos confronta com os dilemas éticos das pesquisas genéticas, da busca pelo domínio da repetição / reprodução mecânica da própria vida em clones, ao mesmo tempo que nos demanda um desacelerar – caminhar e pensar: porque repetir? Para o filósofo Alain Badiou, “ o nosso mundo está marcado pela sua velocidade: a velocidade das mudanças históricas; a velocidade das mudanças técnicas; a velocidade da comunicação; das transmissões; e até mesmo a velocidade com a qual cada ser humano estabelece relações uns com os outros.” Precisamos de pontos de interrupções desses processos em alta velocidade tão incoerentes com a natureza humana. Precisamos de pontos de descontinuidade com o fluxo alienante das projeções de imagens do mundo. Para o filósofo este seria um papel irredutível e singular para a filosofia. Aqui nesta varanda temos que “repetir, repetir, repetir”, a oportunidade de reencontrar esta potência de síntese e ambivalência entre arte e mundo – continuidade e interrupção / suspensão de velocidades, de desatenção na armadilha do repetir para a atenção expandida da diferenciação.
Cabe ao artista de hoje se apropriar de todos os recursos para invocar no público os estados de criação artística de potência para a transfiguração das coisas comuns, ser um provocador de leituras múltiplas de uma mesma época. A instalação de José Paulo se apropria de todo o território da varanda para desacelerar este sujeito-objeto de repetição, dentro de um percurso de signos e estruturas com tijolos e ovos de barro, que o confrontem com o seu estado de acomodação natural ou repetição sem diferenciação. O sentido do conjunto de peças é muito maior do que o de cada peça. Ao visitante cabe a invocação pelo a experiência de um todo que é em si um acontecimento irrepetível no tempo e espaço, diferenciador de cada um indivíduo, que para ser revelado exige sua participação com (e em ) todos os sentidos, do corpo pensante ao caminhante, onde até o respirar é promovido à categoria de atenção com a comunhão com as forças vitais do mundo.
Luiz Guilherme Vergara