
Mostra Acervo por Diogo Viana e Cecília Lemos
13 artistas
23/05/25 13/06/25
Marcelo Silveira
Data
10/10/23 14/11/23
Artista
Marcelo Silveira
Curadoria
Walter Arcela
Existe algo constante na produção artística de Marcelo Silveira, que é o fato de alimentar-se poeticamente dos feixes que a Memória constitui, sempre acompanhada dos seus componentes inexoráveis, tais quais fragmentos, sobras e rejeitos, como indicativa de processos macro-históricos, abrangendo a totalidade da sociedade.
É preciso lembrar que a Memória é uma tecnologia social: no Brasil, fazer esquecer é um projeto político cujo fim está na diluição das violências colonial, ditatorial, social, discriminatória, exploratória e de tantas outras ordens. Desta forma, os arquivos, dispositivos guardiões da memória, não são um local de preservação neutra da história, e sim registros de um sistema de poder e controle (Derrida, 1995).
Baseando-se em suas reflexões acerca da memória e do contato com fotografias e caixas de retratos, Marcelo Silveira desenvolveu Sobre Alegria e Esquecimento uma série de obras homônimas ao título desta exposição. Essas obras são recortes e colagens, criadas a partir do manuseio de cerca de 5.000 fotografias de formandos das décadas de 1920 a 1940. Surgido enquanto desdobramento de duas séries anteriores, “Caixa de Retratos” (2008-09) e “Paisagens” (2008-09), o artista coletou esse material ao longo de 10 anos em mercados de pulgas, leilões e antiquários.
A série destaca principalmente retratos individualizados, em colorações monocromáticas, preto e branco ou sépia (esta última coloração se dá em decorrência da ação do tempo), em que as figuras fotografadas assumem posturas sisudas, em uma dinâmica de coreografias marcadas com gestos sociais contingenciados. O processo de criação das obras começa com o descolamento e a limpeza dos retratos, seguido de recortes e colagens dos fragmentos sobre camadas de papel, criando sobreposições calculadas. As fotografias permanecem na parte da frente, enquanto o verso, utilizado em algumas das obras, é pintado com tinta nanquim preta. A partir dessas formas fantasmagóricas, feitas de elementos vazados, os limites da representação são turvados, cedendo lugar ao apelo formal inerente aos próprios contornos de cada imagem.
O artista intervém nesses arquivos fotográficos criando recortes nas imagens que situam figuras humanas incompletas ou, mais especificamente, destituídas da singularidade principal dos sujeitos humanos: o rosto. Assim, desrosteificados, o caráter de anonimato e apagamento que paira sobre essas figuras aciona um vazio de maneira lacaniana, relacionando-as à incompletude inerente ao ser humano (Lacan, 1964) e relembrando-as por meio do apagamento (Asbury, 2022). Alguns desses rostos retirados foram encaixotados e compartimentados em uma caixa transparente, tornando visíveis semblantes dúbios, dos quais dispomos poucos dados para extrair contextos por trás. Além da retirada facial, são delimitadas em recortes ovais, sobrepostos e sequenciados. Este caráter serial e multiplicado confere uma visualidade espectral às obras e, sobretudo, em aberto, onde se friccionam diferentes temporalidades, todas transformadas em vestígios que gritam inaudíveis: ilustram o que Jacques Derrida (1995) sugeriu sobre arquivos em contínuo estado de desordem, nos quais a tentativa de organizá-los e categorizá-los é uma busca interminável ou impossível. Isto se demonstra, nesta série de obras, na medida em que a visualidade repetitiva das imagens desestabiliza os pontos de fuga ópticos e, na exposição, por meio da expografia nada cartesiana que esgarça a possibilidade de entendimento linear.
Sobre Alegria e Esquecimento
Enquanto analogia da ação do tempo, catalisando fragmentos e instabilidades nessas instituições, sepresentifica, na galeria, uma série de colunas de madeirites tombadas. Essas colunas são oriundas dosprocessos de coleta do artista, das sobras de pilares de origens diversas e que são acopladas entre si.
No plano imagético, as figuras estão em contextos difusos, tendo nos poucos índices os braços e as mãosconstituindo manifestações gestuais impassíveis de ver, no corpo da figura em cena, seu lugar de inscriçãosocial. Já no contraplano da imagem, por sua vez, emergem informações de que atualmente conseguimoster ciência: se são corpos ocupando instituições de Ensino Superior, na primeira metade do século XX,acessos restringidos baseados em gênero e de raça são fatos, bem como a determinação, na época, aindamais violenta, de códigos mantenedores dos papéis de gênero. Curiosamente, a indumentária usadanessas cerimônias solenes, os cortes de cabelo e a monotonia das posições traçam figuras unissex eindiciam quase nada sobre seu papel na sociedade.
A genealogia da história da humanidade também encontra-se na privacidade das alcovas, casas, quartos,salas de jantar e demais localidades normativas, como os dispositivos de Ensino Superior, tema destasfotografias de formandos. Aqui, Marcelo revela intimidades fincadas em contradições, onde aparatos dedisciplina sediam os momentos em que a vida encontra materialização em meio às alegrias, tragédias,anonimatos, esquecimentos e realizações. No entanto, conseguir escapar do sofrimento menor da tragédiacotidiana e obscura que se desenrola sob o teto da vida social, a tragédia da vida-nada, da vida-ninguém,só tem algum sentido ao dar voz a esse mundo sem história (Gullar, 1978). Memórias trazidas no movimento da rememoração não conseguem perpetuar o vivido, mas o ressignificamem cada encontro de temporalidades, pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado naesfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites. Desta forma, valendo-se da artenão enquanto instrumento para exploração do passado, e sim como o próprio meio, essa exposiçãoescrutina questões relacionadas à memória, ao esquecimento, à fotografia, à individualidade e à disciplinasocial de uma forma generosa, convidando o observador a reconstituir sua teia de memórias particularessituadas num espaço expandido entre a alegria e esquecimento.
Referências
ASBURY, Michael; SILVEIRA, Marcelo. Ata. 1a edição. São Paulo: Nara Roesler Livros, 2022.
DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: Uma Impressão Freudiana. Rio de Janeiro:
RelumeDumará, 1995 GULLAR, Ferreira. Uma Luz no Chão. Rio de Janeiro: Editora Avenir, 1978.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.2a edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
Texto: Walter Arcela.