Márcio Almeida 

Vermelho Cruel

Saiba mais
  • Data

    25/09/25 31/10/25

  • Artista

    Márcio Almeida 

  • Curadoria

    Walter Arcela

Como massas ermas, constituídas de campos pictóricos praticamente uniformes, conseguem adensar tantos mistérios em si? Num procedimento que concentra um big bang, onde toda matéria atômica irrompe como num vulcão de represamentos sensíveis, a pintura de Márcio Almeida provoca um cataclisma discreto, emerge lapidando, lapidando e lapidando um aconchego árido.

Um dos embreantes do que hoje entendemos como arte conceitual pernambucana, ao tensionar os limites de práticas e suportes, em afinidade com Paulo Bruscky e Daniel Santiago, a trajetória de Márcio Almeida atravessa múltiplas linguagens, experimentando tipologias variadas como escultura, instalação, performance e objeto. Apesar dessa multiplicidade de meios, a pintura persiste na produção de Almeida como lugar de enfrentamento. A prática nunca se estabiliza, mas se configura como um embate infindável e metodológico dentro daquilo que o artista busca mostrar. Assim sendo, é na pintura que se germinam pesquisas, ideias, pontapés de perguntas que para Almeida se intensificam por meio de várias mídias.

A série Vermelho Cruel, majoritariamente formada por pinturas, que norteiam esta exposição, nasceu em diálogo com as audições do disco Azul Invisível Vermelho Cruel, do cantor e compositor pernambucano Lula Queiroga, durante a pandemia ocasionada pelo Covid-19. É uma ilustração profícua de linhas de força centrais na produção do artista, a saber, verbivocovisualidade, uma epistemologia do erro, e a ancestralidade enquanto metodologia.

Em primeiro lugar, a escrita ocupa aqui um espaço recorrente. Não como adorno ou comentário, mas como eixo composicional do gesto pictórico. Vale lembrar que o início da carreira artística de Almeida se deu enquanto letrista, fazendo parcerias para composições de musicistas. A verbivocovisualidade desses dizeres nos termos postos por Haroldo de Campos, é a triplasubstância das pinturas: são simultaneamente lidas, sentidas e vistas enquanto objeto estético. Almeida já afirmou que as géneses de muitos dos seus projetos surgem com uma escrita automática, direto na tela. Dizeres aparentemente desconexos ou descontinuados que evocam a experiência humana do mundo em diferentes culturalidades: relações de trabalho, anatomia, dores, território, práticas culturais. Inventando inclusive uma família de fontes próprias, os dizeres muitas vezes dão pistas do tom do trabalho.

Já a epistemologia do erro se afigura de múltiplas maneiras: a gestualidade artesanal do trabalho de Márcio é evidente. É daí que Leonor Amarante(2023) identifica um “acento oriental” em sua obra,só que ao invés de formarcaligrafia, ela faz o mata-borrão.

O gesto que configura a tela não se ancorano cálculo, mas no improviso, na escuta atenta da superfície. Aproxima-se, assim, de uma cadência musical, como no jazz, em que instrumento e intérprete constroem juntos. Nesse processo, cabe a rasura, o pintar por cima, o apagar e retomar, o retoque que não é corretivo. Incluem-se nesta série também acidentes: vernizes que escorreram na tela a ela se incorporam, assim como o borrado e o escorrido da tinta diluída, sangrando desintencionalidade, mas acolhidos deliberadamente como parte constitutiva da obra. Afinal, “gestos construtores para sua eficácia são paradoxalmente aliados a gestos destruidores. Constrói-se à custa de destruições, num jogo permanente de instabilidade” (SALLES, 1998, p.30). O processo de Almeida, nesse sentido, mostra-se como um ato permanente, não vinculado ao tempo de relógio, nem a espaços determinados, resultado de um estado de total adesão à própria prática e uma perspectiva espiralar de procedimentos.

A abordagem da ancestralidade, por sua vez, precisa ser entendida cautelosamente: não é o tema da ancestralidade que está em evidência. Tampouco me refiro a uma ideia de ancestralidade situada, mas análoga aos termos de Eduardo Viveiros de Castro (2004), ao pensar a ideia de um “perspectivismo”, em que a natureza não é um pano de fundo único sobre o qual recaem representações culturais diversas, ao contrário, há uma só cultura e múltiplas naturezas, o que significa que não é a representação que varia, mas o próprio mundo que se multiplica, havendo temáticas e valores em comum que antecedem as sociedades “civilizadas”. Assim, a ancestralidade em jogo nas pinturas não se refere a uma iconografia de mitologias ou cosmovisões, mas as incorpora enquanto lógica, ou melhor, enquanto metodologia. Durante a década de 1980, Almeida fez reiteradas viagens para a Amazônia, mesma época em que estava estudando no curso de Zootecnia, o que segundoele mesmo, trouxeuma profunda influência em sua poética, no jeito de observar as relações animais, as quais incluem a nós, animais humanos. A pintura de Márcio Almeida, nesse horizonte, não tematiza a ancestralidade, mas norteia sua própria constelação de interesses, de maneira profundamente natural, avessaa uma lógica panfletária num corpo que se torna atravessado por perspectivas, ritos, e materialidades, coisas que falam pouco, mas perguntam muito mais.

Essa conjugação não se organiza como estruturafixa: irrompe como fluxo não domesticado, tecido de fragmentos, rasuras e lampejos, que se orienta para a construção de uma paisagem. Refiro-me ao gênero paisagem em seu sentido pleno, no qual se estabelece a perspectiva de um fundo e a presença de elementos em primeiroplano que conferemdimensão cênica à composição. Essesindícios sugerem um acontecimento inscrito em determinado espaço-tempo, ainda que esse

espaço seja metafísico, atômico, refratário à espacialização ordinária. A produção se ergue, assim, como refrescos de incerteza: campos em que a cor escorre e pulsa, instaurando atmosferas nas quais o olhar seperde e, ao mesmo tempo, reencontra o mistério do fundo do olho, como diz Lula Queiroga, numa faixa do álbum Azul Invisível Vermelho Cruel.

Assim, a obra de Márcio Almeida firma sua coreografia. Um artista que mesmo tornado cânone na cena das artes visuais brasileiras, com considerável tempo de trajetória e institucionalização, permanece de alguma forma no panteão dos artistamarginais, termo aqui despido de suas tonalidades pejorativas, intencionando sublinhar a qualidade daqueles com uma obra tão singular que não se encaixam integralmente nos movimentos e gerações familiares, ainda que delestenha nutrido proximidade, a exemplo de nomes continuamente experimentais e ousados, como Ezra Pound, Waly Salomão e Jards Macalé. A insistência da pintura como desafio ontológico, a escrita como fluxo subterrâneo, o diálogo com práticas ancestrais e a reverberação das linguagens musicais. Seu trabalho, longe de propor sínteses, abre paisagens onde cor, escrito e estrutura se confundem, instaurando uma poética que se sustenta precisamente na tensão entre confissão e segredo, entre superfície e enigma, composição e erro, música e cadência, até que olhando pra eles, “perdemos de vista o que não seja corpo/ e sentir separado dentre os dentes/ um filete de sangue nas gengivas” (Ana Cristina Cesar, 2016, p.63).

Walter Arcela

Imagens

Conheça também

Ver todas

Vermelho Cruel

Márcio Almeida 

25/09/25 31/10/25

Explore

Inferno – Cânticos

13 artistas

06/08/25 18/09/25

Explore