
Mostra Acervo por Diogo Viana e Cecília Lemos
13 artistas
23/05/25 13/06/25
Clara Moreira, Fefa Lins
Data
06/07/23 05/08/23
Artistas
Clara Moreira, Fefa Lins
Curadoria
Clarissa Diniz
Esta exposição surgiu do encontro de uma pessoa que começou a se pintar para conseguir se olhar com alguém que se desenha para enxergar suas paisagens internas.
Da convergência desses pontos de vista brotaram forças opticamente inquietas, ansiosas por torcer seus próprios imaginários de espelhamento e refração. Assim, a original visualidade do flerte entre Fefa Lins e Clara Moreira transmutou-se em materialidade, toque, palavra e som, dando forma à oralidade, à tatilidade e à topologia que agora identificam Vértice.
A palpabilidade dos afetos não é, todavia, nova para esses artistas. Se, de um lado, a vocação à escala real costuma simetrizar imagens e presenças – produzindo a sensação de estarmos sendo igualmente observados pelas figuras que espiamos –, de outro constatamos que suas obras estão impregnadas de uma carnalidade que é tanto tinta quanto pele. Que estão estruturadas sobre uma musculatura que, sendo do corpo, é antes de tudo oriunda do próprio desenho.
Desse modo, diante da vastidão dos planos e da densidade das tramas de lápis de cor ou das espessuras da tinta a óleo, sentimos que as retratísticas de Lins e Moreira são um modo de pensar e de criar a seus próprios sujeitos através de retratos de intensa afecção. Seus trabalhos são capazes de compartilhar a intimidade entre autor e obra numa voltagem emocional que nos enreda em sua atmosfera de familiaridade e nos integra na relacionalidade de seus peculiares exercícios de (auto)conhecimento.
Suas poéticas transformam a virtuosidade figurativa do canônico naturalismo da história da arte ocidental numa racionalidade que, comprometida em ser lente e espelho para os artistas, se torna menos uma exibição de sua destreza técnica do que uma estratégia de auto-inteligibilidade. Clara Moreira e Fefa Lins se retratam não só para cogitar a si mesmos como, fundamentalmente, para poder pensar. Suas obras habitam o território político das representações porque, antes, se inscrevem numa política do inteligir.
Nesses termos, ainda que a aproximação de seus trabalhos inevitavelmente nos lance na problemática do gênero do retrato e do retrato de gênero – na medida em que evocam a profícua tradição dos retratos e que, neles, tornem protagonistas precisamente as suas experiências de mulheridade, maternidade e transição de gênero –, em Vértice podemos testemunhar como, ao fitarem e reconhecerem um ao outro enquanto artistas, Clara e Fefa lançam mão de alguns dos artifícios que, na dimensão privada de seus ateliês e processos, costumam usar para criar suas obras e dar corpo a suas políticas de autoconhecimento.
Desenhando de frente para sua própria imagem, Clara, modelo viva de si mesma, habita justamente o vértice de seu ateliê: ela trabalha de pé na quina que rebate a superfície do papel sobre o plano de um grande espelho. A sensação de acolhimento daquele cantinho de sua caverna – como carinhosamente nomeia seu ateliê, por ela frequentado especialmente durante o breu das madrugadas – encontra um duplo no dispositivo que, nesta exposição, conecta duas de suas obras a um par de pinturas de Fefa Lins. Tocando umas às outras por meio de suas molduras, os artistas trazem a metodologia do vértice para a galeria e, ao fazê-lo, performam uma das estratégias centrais da figuração de Fefa, a colagem.
Grudadas, as obras passam a se encarar tal como, em seu ateliê, Lins fita as montagens digitais que roteirizam sua obra. Explorando a racionalidade intrínseca à colagem, as montagens são vertebrais na criação do imaginário alegórico de suas pinturas, uma vez que transmutam sua prática de posar para se fotografar em composições oníricas habitadas não só por suas selfies, como também por imagens apropriadas do mundo digital.
Ladeando e colocando frente a frente as obras de Fefa e Clara, enquanto um gesto curatorial coletivamente concebido, Vértice se apropria publicamente das táticas de inteligibilidade que sustentam assuas poéticas. O fazemos na intenção de compartilhar não uma sequência de enunciados temáticos acerca de suas pesquisas, mas as suas próprias políticas do inteligir – aqui encarnadas na topologia da colagem espacial das obras, na tatilidade de suas diferentes materialidades e na presença de fragmentos de anotações, textos e poemas que ocupam a exposição por meio de uma conversa entre as vozes de seus autores.
No vértice da Amparo 60, outra das frontalidades da mostra acontece: duas caixinhas de som incorporam Moreira e Lins, agora rebatendo não as suas imagens, mas as texturas e as signficações de suas falas. A instalação relê o momento de sua própria gestação, quando os artistas leram, um para o outro, trechos do caudaloso (ainda que nem sempre visível) repertório verbal de suas poéticas, marcado por diários, listas, textos, títulos, postagens, lembretes.
Lendo-se um para o outro, Fefa e Clara exercitam as práticas de (auto)conhecimento que são caras à sua sobras mas, desta vez, não o fazem apenas na chave de uma correspondência dual. Ao convidar Anti Ribeiro para colaborar com o trabalho, multiplicam as direções de suas habituais dinâmicas de reflexão e refração, acolhendo uma terceira presença na intimidade de sua relacionalidade.
Conduzidos pela dimensão fugidia dos modos de espacialização do som, com a preciosa aliança de Anti e, na exposição, com a cumplicidade dos públicos, os artistas parecem se aproximar da iminência de uma abertura mais radical – e quiçá do desmantelamento – de seus vértices. Se convocaram dobradiças para estruturar os ângulos dessas conversas e colocar de pé e coladas as suas obras, é porque sabem que toda dobra carrega um giro em potencial.
Talvez tenhamos, com Vértice, não só a afirmação do poder de inteligibilidade do curvar-se sobre si mesmo, mas igualmente a aparição de movimentos – como a amplificação das paisagens na obra de Fefa e o recente interesse de Clara pela expansão de alguns dos detalhes de suas cenas – que talvez estejam prestes a emancipar as curvas de seu próprio centro, desatando-as das linhas e fitas que tanto marcam os imaginários desses artistas para o caso de desejarem inclinar-se noutras direções.
Texto: Clarissa Diniz.